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RESENHA DA PROFª VERA DIAS

Vozes do Deserto : Uma arrebatoadora narrativa oriental de Nélida Piñon

Todos conhecemos a maravilhosa obra "As Mil e uma Noites" e seus contos fantásticos. É daquelas obras que já se encontra gravada no inconsciente coletivo e que até hoje nos emociona. O núcleo básico desta obra, que dá início e impulso às narrativas, envolve a relação entre o Califa de Bagdá e sua mais recente esposa e supostamente sua próxima vítima, Scherezade. O rei persa, após ser traído por sua mulher com seu próprio escravo, manda executá-la e decide se vingar do gênero feminino. Ele se casa cada dia com uma jovem, a quem mata no dia posterior. Durante três anos ele pratica o mesmo ritual, até que não haja mais jovens virgens em seu reino. É quando a filha do Vizir, Scherezade, a mais bela donzela da corte, decide se casar com o Califa, apesar de todos os riscos. Muito inteligente e astuta, ela arma um plano com a ajuda de sua irmã, Dinazarda, que com a permissão do soberano dorme também no quarto nupcial.
Conforme combinado, a cunhada do Califa convida a irmã a lhe narrar um de seus contos fantásticos. Encantado com a narrativa, que ela habilmente não conclui, despertando sua inevitável curiosidade, ele adia a execução da jovem, que vai intercalando uma história a outra, enredando-o em uma teia bem urdida, que ao mesmo tempo vai curando suas feridas e seduzindo-o. No fim das mil e uma noites o rei se revela completamente apaixonado e desiste de matá-la, bem como de sua desvairada vingança..
Esta ancestral e sedutora narrativa tem inspirado, ao longo da História, diversas obras literárias, teatrais, cinematográficas e artistas de todas as partes do Planeta. E a versão contada nesse livro de Nélida Piñon, para mim, chega a ser tão ou mais emocionante e sedutora que a original.
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Nélida escreveu criou este romance em 2004, e desde então, inúmeros artigos e pesquisas sobre esse espetacular livro tem sido escritos sobre ele. E não é para menos. Esse livro demonstra todo o gênio, domínio da narrativa e faz juz ao talento dessa versátil escritora. Quando comecei a lê-lo da primeira vez, me recordo que me desliguei do mundo de tão absorta que, quando dei por mim ao chegar à última página, não pude deixar de lamentar que o livro tivesse chegado ao final.
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Há quem defenda que, para escrever, tem de se estar inspirado – e que esta inspiração é claramente algo transcendente e externo ao escritor que nem sempre aparece. Sim, acredito que haja para cada pessoa um momento ou um tempo mental mais propício à escrita, embora não tenha a certeza de que as mãos sejam guiadas por qualquer força divina ou energia desconhecida. Mas para Nélida, parece que isso é um dom divino que já nasceu com ela.
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Lendo suas inúmeras entrevistas e depoimentos em revistas e vídeos, sei que ela disse muitas vezes que desde cedo sabia que seria escritora. E constatei através de seu próprio testemunho que desde cedo Nélida foi uma leitora voraz e esteve sempre praticando sua arte. Mesmo possuindo o dom da escrita em grau elevado, os melhores escritores do mundo precisaram absorver e praticar muito para chegarem ao grau de excelência que geraram suas obras. E Nélida não fugiu à regra. Ela mesma aconselhava a todos que a entrevistaram indagando sobre seu talento que ele era produto de seu contato desde a infância com o mundo literário e experiência. Mas também ela atribuiu esse talento à sua descedência espanhola, orginária da Galícia. Em uma entrevista concedida à Revista Rascunho, ncontramos essa importante declaração dela :
" [...] Mas a Galícia foi fundamental à minha formação. Dilatou o meu imaginário, o meu sentimento narrativo. Porque os galegos são grandes narradores orais, além de grandes escritores. Quando narram, você tem a sensação de que nenhuma história está autorizada a chegar ao seu final. A história se prorroga. E é verdade: a grande história não termina. Acaso vocês terminam de ler a Ilíada?". (Revista Rascunho, edição nº 110).
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Por conta dessa declaração de Nélida, com certeza, o sucesso do livro Vozes do Deserto poderia ser atribuído em parte a essa oralidade ancestral de que ela herdeira. Podemos observar claramente que a construção da referida obra se efetual nas dobras da intertextualidade estabelecida com o milenar Livro das mil e uma noites, revisitando-o e atualizando-o. Vozes do deserto reconta a intriga clássica delineando os afetos e a história de uma Scherezade transgressora. Nélida apropriou-se apropriação da obra oriental com vistas à elaborar sua obra no pleno e profícuo diálogo entre a tradição e o contemporâneo.
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A construção elaborada por Nélida fomenta o interesse do leitor para encontrar no texto, a resolução do problema da protagonista. Tempo e espaço ao longo do romance são pouco definidos: "Quanto a Scherezade, confinada ao palácio, seu campo afetivo estreitara-se naqueles meses" (PINON, 2005. p. 212). Algumas vezes, encontra-se a menção aos dias que se passaram desde que Scherezade chegara ao palácio e em algumas outras vezes, a autora volta ao passado das personagens, distante ou próximo, a fim de justificar algum acontecimento. Recorremos ao início do terceiro capítulo quando Scherezade, já estando atada ao Califa, relembra seus últimos momentos na casa do Vizir:
Ainda na casa do pai, na véspera de partir, Scherezade imaginara-se na cama, com o soberano a cavalgar arfante sobre seu corpo. Antecipando o horror que a cena lhe inspirava, fechara os olhos para impedir o desfecho daquela cópula que prosseguia no sonho, a despeito de seus planos de combater o sexo desregrado daquele ditador a cuja a presença seria conduzida na manhã seguinte (PIISION, 2005, p. 19).
Ao longo do romance não há diálogos diretos. As falas são construídas indiretamente pelo narrador, que permanece como uma câmera, informando os pensamentos e sentimentos das personagens, a fim de conferir unicidade à obra. Com construção e tensão literária requintadas, a autora envolve seu leitor e o deixa inserir-se em uma Bagdá no século X, reverberada no século XXI:
Abranda a nostalgia diária observando o firmamento. Do jardim da janela, o olhar avança pela cidade envolta em uma esfera avermelhada. No prenúncio do lento anoitecer, Bagdá surge-lhe como um projeto concebido em terras estrangeiras pelo próprio rei Davi, que, em assomo de reverência a Jeová, entregara a Salomão, filho tido com Batseva, a tarefa de construir o templo do qual o deus de Abraão apresenta-se como guardião e arquiteto (PINON, 2005, p. 175).
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Ao contrário da obra milenar, temos na obra romanesca a revelação de uma protagonista que desempenha um papel aquém ao de contar histórias para puro entretenimento. A protagonista de Pifion — Scherezade — exige sua liberdade. Apesar de ser revelada em um Oriente antigo e de sociedade patriarcal, Scherezade é uma mulher que sonha, deseja, odeia e que, por vezes, obedece ao pai ou marido, outras vezes não os obedece. Scherezade não se abate, mostra-se astuta como a personagem milenar, mas com impetuosidade alcança seu objetivo e institui sua própria liberdade.
Interessante destacar que é nessa oposição que se constata que, consciente da transmissibilidade da tradição oral presente no Livro das mil e uma noites, e amparada pela verdade e impressões trazidas da narrativa oriental, Nélida Piñon imprime em seu romance contemporâneo o influxo narrativo perpetuado pela heroína.
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Por meio das palavras do narrador de sua obra e postada pelos sentimentos da irmã Dinazarda, Nélida outorga a importância desta experiência, da importância da memória também para sua protagonista, Scherezade:
Quase tudo que ela vem produzindo, às expensas do Califa, é fruto da invenção, dos pergaminhos que leu, das histórias que escuta, dos prodígios que a memória foi acumulando ao longo dos anos. E de sua vocação de inventar e de viver muitas vidas ao mesmo tempo. Ainda de conceber cidades soterradas, de decifrar inscrições há muito desaparecidas, de enveredar pelo sonho ao traduzir estas mensagens crípticas. Sem esquecer a persistência dos mestres de Bagdá, as fugas ao bazar, a que acudira às vezes em trajes masculinos, dando à voz um acento rascante, áspero. Quase sempre com as mãos dentro dos bolsos da túnica, para que não lhe vissem os dedos alabastro, modelados longos e ágeis, enquanto ia aprumando o corpo com a audácia negada às mulheres (PINON, 2005, p. 171).
A partir dessa reflexão observamos que neste romance a autora parece procurar respostas para os problemas da vida e o sentido da existência. E para isso, convém destacar aqui que os traços desse gênero literário está em justamente recorrer ao passado para a compreensão do indivíduo no presente, e responder assim, suas questões de existência. "A tarefa do escritor não é, portanto, simplesmente relembrar os acontecimentos, mas "subtraí-los às contingências do tempo em uma metáfora", conforme Marcel Proust declarou em sua obra 'Em Busca do Tempo Perdido', Plêiade, 1954, vol. III, p. 889).
É notório que a individualidade que caracteriza a obra de Nélida é o fruto de seu trabalho de muitos anos. A estilização feita pela autora brasileira fornece mais que apenas ressignificações do Livro das mil e uma noites. Ela concentra em sua obra a tradição da narrativa oral exalando sua própria erudição.
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Para compor essa obra, Nélida Piñon, sendo a primeira mulher brasileira a presidir a Academia Brasileira de Letras (1996) , e autodefinida como feminista histórica, segundo uma de suas entrevistas, teve de mergulhar no estudo da história e da mitologia árabes por cinco anos.E nesse romance Nélida consegue renovar seu estilo e com isso conquistou uma legião de fãs com essa personagem feminina e ao mesmo tempo prenunciadora das heroínas feministas modernas.
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Além disso, é importante ressaltar que Nélida ao resgatar da tradição oriental a história das Mil e Uma Noites, promove uma releitura desta fabulosa obra. Assim como sua personagem Scherezade, a autora também recorre à tradição para construir suas fabulosas histórias. Assim como essa autora e tantos outros intelectuais, a narradora recorre à voz da tradição e acrescenta elementos peculiares à sua própria cultura, buscando estabelecer um diálogo entre a tradição resgatada e as tradições locais, como podemos observar no parágrafo :
O Oriente é uma vertigem em sua alma. Por força desta atração, Scherezade mergulha na memória arcaica e nos arcanos de outras latitudes, revive enigmas históricos, como o encontro de Príamo com Aquiles, após a morte de Heitor. E o reproduz com riqueza de detalhes, dando realce, por pura solidariedade feminina, aos lamentos de Andrômeda e de Hécuba, mulheres golpeadas pela dor. Aquele momento único em que o rei de Tróia, ajoelhado diante do altivo filho de Tétis, reclama os despojos do príncipe Heitor. (PIÑON, 2004, p. 165)
Scherezade, portanto, desenvolve um trabalho semelhante ao de Piñon ao reviver enigmas deixados por grandes obras clássicas, atribuindo ao elemento reproduzido novos contornos, novas formas. Além disso, a narradora sente uma enorme atração pelo outro, restaurando uma memória que não lhe pertence, mas que passa a adquirir características muito particulares.
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Em Vozes do Deserto, Piñon foca sua narrativa na personagem Scherezade, desvelando seus desejos, suas dúvidas e seus anseios, e descrevendo toda a preparação da narradora para contar suas histórias fabulosas, como nos disse o crítico e historiadorAlfredo Bosi em nota sobre o livro: “Agora sabemos quem é Scherezade, pois Nélida nos revelou a sua natureza profunda: é a força mágica da voz narrativa que enfrenta, a cada lance a opressão e a morte.”
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Concluindo, esta é mais uma das grandes obras de Nélida que recomendo a todos a leitura, pois quando a autora a escreveu, não teve por objetivo repetir a história já contada ou reproduzir o discurso das Mil e Uma Noites e, sim, teve o propósito de dialogar com a obra, rememorando um texto de importância fundamental. A autora abriu espaço para uma Scherezade antes desconhecida, que ganhou, desse modo, novos contornos no seu romance. E essa tarefa doi realizada com seu brilhantismo e criatividade de sempre, surpreendendo a todos nós mais uma vez.
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REFERÊNCIAS :
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
PIÑON, Nélida. Vozes do Deserto. Rio de Janeiro: Record, 2004.
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Depoimento de Nélida Piñon sobre a obra Vozes do Deserto
