

ENTREVISTA FEITA PELO ESCRITOR GIOVANNI RICCIARDI [1] A
SILVIANO SANTIAGO [2]
Essa entrevista está presente em Biografia e criação literária. Entrevistas com escritores mineiros, vol.3, UFOP, 2008
[1] Giovanni Ricciardi é sociólogo, professor, tradutor, ensaísta,crítico. há mais de vinte anos se dedica ao estudo, a investigação e a divulgação da literatura brasileira no exterior. Seu interesse pela nossa literatura começou na década de sessenta quando foi aluno do poeta brasileiro Murilo Mendes, no curso de Letras Clássicas na Universidade de Roma, onde defendeu tese sobre o livro 'Vidas Secas", de Graciliano Ramos. Mais tarde, na Universidade de Nápoles, foi professor de literatura portuguesa e brasileira, e organizou uma antologia de textos de escritores brasileiros modernos.
[2] Nasceu em (Formiga, MG, 29 de setembro de 1936) é um ensaísta, poeta, professor[1] contista e romancista brasileiro. Com dez anos, muda-se para Belo Horizonte. Em 1954, principia a escrever para uma revista de cinema. Ajuda a idealizar e publicar a revista Complemento , em 1955. Em 1959, laureou-se em Letras Neolatinas.
Vivendo no Rio de Janeiro, se especializa em literatura francesa, o que o levará ao doutorado na Universidade de Paris[3], Sorbonne, onde decifra o manuscrito Moedeiros Falsos de André Gide.Candidata-se de Paris ao posto de instrutor na Universidade do Novo México, em Albuquerque, entre os anos 1962 a 1964. Em 1969, publica em Nova York a antologia Brasil.Passa pelas Universidades de Rutgers, Toronto, Nova York, Buffalo e Indiana. No Brasil, foi catedrático da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e na Universidade Federal Fluminense
Como apresentaria sociológica e culturalmente seu núcleo familiar de origem e seu meio ambiente?
Venho de uma família de classe média do interior de Minas Gerais. Nasci numa pequena cidade chamada Formiga, que tinha mais ou menos 30 mil habitantes. O meu pai tinha dupla formação: ao mesmo tempo farmacêutico e cirurgião-dentista; no entanto, abandonou a farmácia e eu já o conheci como dentista. Era um pouco o dentista da cidade. Como era uma pequena cidade, as profissões designavam e definiam as pessoas, então, eu era o “filho do dentista”, por assim dizer.
Quando nasceu?
Nasci em 29 de setembro de 1936. A nossa família é bastante numerosa, somos onze em casa, de dois casamentos. Eu sou do primeiro casamento: minha mãe morreu quando eu tinha mais ou menos 1 ano e meio, meu pai tornou a casar e, então, existem mais quatro filhos do segundo matrimônio. Quando eu tinha 10 anos, por razões de estudo dos diversos filhos, nós nos transferimos para Belo Horizonte. A partir de então, meu pai começou a ter negócios de artigos dentários e nisso os homens da casa tiveram que se empenhar. Então, a partir de um determinado momento, já em Belo Horizonte, eu estudava e também trabalhava nessa loja, desde os 12 anos.
Gostaria que dissesse mais alguma coisa sobre a sua família?
Eu sou o sexto da família. Uma coisa curiosa é que praticamente todos nós tivemos formação universitária; acho que isso é um aspecto importante e diz bastante sobre a relação que meu pai mantinha com os filhos. Ele conseguiu, de uma maneira bastante sutil, uma instauração de competitividade entre os filhos que, por um lado, tornou-os bastantes produtivos – todos nós temos boas profissões –, e por outro lado, dificultou muito nosso relacionamento fraterno, que, eu diria, é bastante precário. Em primeiro lugar, por esse motivo; em segundo, por haver dois casamentos, que foi uma questão bastante delicada. Nesse sentido, eu diria que meu relacionamento com meu pai foi bastante difícil; o meu primeiro texto, inclusive, trata desse relacionamento.
Qual texto?
“Pai e Filho”, a primeira novela que escrevi e que saiu no meu primeiro livro, trata, obviamente de maneira romanceada, desse relacionamento. O grande trauma de minha vida é justamente a perda da minha mãe quando eu tinha 1 ano e meio de idade. Ela morreu no parto, dando à luz meu irmão subseqüente. Fica óbvio (não vou me alongar muito nesse assunto) que a vida familiar fica bastante traumatizada com esse tipo de acidente, esse tipo de morte. Nós nunca pudemos comemorar aniversários dentro da família, pelo menos a partir de mim, porque exatamente no dia do aniversário de um dos irmãos a mãe tinha morrido. Então, eu diria que a vida familiar não é uma das mais felizes, é uma vida marcada, não diria por raivas e ressentimentos, mas por pequenas ilhas. Cada um viveu um pouco sua própria vida e tentou se organizar a partir dos próprios instrumentos de bordo.
Qual era o tipo de educação? Religiosa?
Leve em conta que eu fui criado sem mãe... Meu pai era, por definição, católico, mas não ia à missa, nem tinha hábitos religiosos. Um dado curioso é que meu padrinho era espírita e, em virtude disso e por viver numa pequena cidade, fui batizado numa cidade vizinha; o vigário de Formiga não quis. Naquela época havia muito preconceito, sobretudo no interior de Minas, contra espírita, maçons... essas coisas.
E os companheiros da época? Em casa já havia muitos...
É, em casa éramos muitos. Os companheiros em geral eram os vizinhos. A educação era bastante vigiada, era muito vigiada inclusive pelos vizinhos. Por exemplo: eu chegava em casa e meu pai dizia que a vizinha fulana de tal tinha dito que nós estávamos fazendo tal e tal coisa. O potencial de liberdade era restrito pela “polícia” dos vizinhos.
Talvez por ser filhos do dentista...
Também. Não há dúvida nenhuma que nós tínhamos uma certa posição, um status dentro da cidade, e, aliado a isso, o fato de eu não ter mãe.
E a relação com a madrasta?
A relação com a madrasta foi bastante boa enquanto ela não teve filhos; no momento em que ela teve, obviamente, a situação complicou bastante. O que há de interessante é que sou neto de italianos, mas a presença da Itália na minha casa era inexistente, a não ser por uma governanta que eu tive, entre 1 ano e meio e 5 anos de idade, que se chamava Sofia D’Alessandro, era italiana mesmo. Ela desaparece completamente da minha casa quando meu pai volta a se casar (esse foi outro grande trauma para mim). Houve uma dupla perda na minha vida, que eu sinto como uma coisa muito violenta.
Qual é reflexo que essa dupla perda teve na sua escrita?
É muito difícil responder assim, à queima-roupa, porque são problemas que eu, obviamente, trabalho no nível inconsciente quando escrevo. Sem dúvida nenhuma, parte das características dos meus personagens refletem um certo isolamento de uns com relação aos outros e, basicamente, eu diria que há uma carência de afetividade que ajuda a desenhar a maioria dos meus personagens mais importantes.
Quais os livros que constituem a sua biblioteca nesse período?
Era o que eu ia te dizer. Eu li muito pouco nesse período. Em Formiga fiz aquilo que nós todos fazíamos na época: ler gibis (isso eu lia demais) e via muitos filmes. Todas as noites que havia um filme novo eu ia ao cinema. As leituras de livros propriamente ditos só as fui fazer, em Belo Horizonte, depois dos 10 anos. As leituras básicas foram de histórias em quadrinhos, primeiro, ainda que às vezes fossem tiradas de romances, como era costume. Depois, na passagem da infância para a adolescência, comecei a ler em particular livros infantis de Monteiro Lobato.
Está em todas.
Era o único também; então nós líamos muito esses livros e também as adaptações para criança que Monteiro Lobato fazia de D. Quixote, Robinson Crusoé... Eu não me aventurava em leituras mais pesadas. Quando termino o ginásio, entro para o Centro de Estudos Cinematográficos de Belo Horizonte, e vou fazer o que se chamava de científico. Tomei duas “bombas” no curso científico; eu estava designado para ser arquiteto ou engenheiro e, em virtude dessas duas “bombas”, passei para o curso clássico e aí me defino mais e mais para uma carreira, digamos, “cultural”. Quando entro para o Centro de Estudos Cinematográficos, encontro jovens da minha idade e fazemos um grupo que, mais tarde, vai fazer uma revista chamada Complemento e trabalhar numa revista de cinema muito importante chamada Revista de Cinema. Mas até chegar aí, então, me encontro com um grupo de intelectuais mais velhos de Minas Gerais. Entre eles eu ressalto uma figura que foi muito importante para mim, que tem possivelmente tonalidades paternas, é Jacques do Prado Brandão.
Isso antecipa uma pergunta. Então você encontra nesse período a figura de um “mestre”?
Exato. Essa pessoa extraordinária que é Jacques Brandão, advogado de formação, mas crítico de cinema. Na época tinha sido integrante de um grupo chamado “Edifício”, cujos integrantes vieram todos para o Rio de Janeiro, menos ele que ficou em Belo Horizonte. Ele tinha uma formação intelectual extraordinária, extraordinária realmente, sobretudo para uma cidade provinciana como Belo Horizonte. Ele começou a me passar livros. Lembro-me muito bem dos dois primeiros, que não entendi então. Ele me passou Páginas de doutrina estética, de Fernando Pessoa, e ABC of Reading, de Ezra Pound. Isso em 1954, por aí.
Não é fácil isso.
Não, não era. Eram leituras até para assustar. Acho que a idéia básica dele era de estabelecer um nível muito alto a chegar e, a partir daí, então, fazer leituras. E eu fiz leituras bastante seguidas, seja de autores brasileiros, seja de estrangeiros, mas, sobretudo, autores estrangeiros, nessa época. Também comecei a ter um interesse muito específico pela cultura francesa. Me matriculei na Alliance Française e cheguei ao “Nancy”. Exatamente em virtude dessa formação francesa é que eu optei por fazer Letras neolatinas e depois o curso clássico. O cinema era de certa forma um hobby que devia satisfazer as minhas inquietações. Fui crítico de cinema durante muitos anos: mesmo jovem, fui antes de mais nada crítico de cinema.
E depois da faculdade?
Fiz faculdade de Letras, onde me especializei em Francês; recebi duas bolsas de estudo para me especializar ainda mais no Rio de Janeiro. Ganhei uma bolsa para fazer doutoramento na Sorbonne e, quando comecei a fazer o doutoramento, recebi um convite dos Estados Unidos e fiquei então muitos anos ensinando Literatura Brasileira nos Estados Unidos. Em 67, voltei à França para terminar meu doutorado e comecei a ensinar Literatura Francesa. Voltei ao Brasil em 1973.
Onde ensinou Literatura Brasileira?
Na Universidade de Buffalo.
Quando considera ter acabado sua mocidade, seu período de aprendizagem?
Tenho impressão que muito tardiamente. Acho que aos 35 anos.
Por que aos 35 anos?
Não sei bem. Tenho um livro de poemas que eu nunca publiquei que se chama exatamente 35, porque foi escrito na crise dos 35 anos. Tenho impressão que a primeira grande crise existencial que tive foi a crise dos 35 anos.
Foi motivada por algum acontecimento?
Claro! Sobretudo pelo reconhecimento de uma vida íntima com problemas, que na época pareciam sérios e que hoje já não me parecem tão sérios. Diria que tive muito mais uma crise existencial do que política ou social.
Como e quando começou a escrever ficção?
A primeira coisa que escrevi foi uma crônica bastante bobinha, quase sem sentido, e as motivações creio que foram aquelas clássicas de juventude: uma determinada insatisfação, uma determinada infelicidade, um estar no mundo e, ao mesmo tempo, uma tentativa de se afirmar.
Quando foi essa primeira tentativa?
Muito jovem, talvez com 16, 17 anos, por aí. Uma crônica que foi publicada inclusive. Depois, passei a escrever alguns contos e, obviamente, o primeiro – o que se poderia chamar “conto” – chama-se “Os velhos” e foi publicado no primeiro número da revista Complemento de Belo Horizonte. Não há dúvida nenhuma que esse conto tem um componente biográfico muito grande: a conversa de dois velhos que estariam à beira da morte, uma conversa insossa e quase sem sentido, uma coisa quase pré-becketiana, e me lembro muito bem que a epígrafe é de T. S. Eliot e traduz muito bem o que para mim era importante na época, que era, se não me engano, mais ou menos assim: “Thougts of a dry brain in dry season”. Na época havia uma certa aridez, uma certa – usando a terminologia de João Cabral de Melo Neto de quem eu já gostava muito nessa época – “mineração do ser” que me seduzia muito. Aprender uma certa secura, uma certa dramaticidade que viria não tanto do trasbordamento, mas de as pessoas serem extremamente secas, minerais, ácidas. Foram coisas que me interessaram muito num primeiro momento.
Quem publicou seu primeiro livro?
O primeiro livro de poesias, de 1960, se chama 4 poetas. Éramos quatro estudantes da Faculdade de Letras que nos reunimos e publicamos esse livro. O primeiro livro de ficção é de 1961, foi publicado mesmo em 1961 com Ivan Ângelo, e se chama Duas faces; eu tinha duas novelas e ele sete contos. Esse foi o primeiro livro que publiquei.
Você é também um escritor. Como concilia as duas carreiras?
Acho que é uma pergunta bastante boa e a resposta deve ser um pouco longa. Em primeiro lugar eu me lanço, antes de mais nada, como escritor. Mas esse escritor é abafado pela presença muito forte da faculdade de Filosofia. Também, talvez pela presença desse amigo, o Dr. Jacques do Prado Brandão, eu percebesse que deveria ter uma formação muito boa para ser escritor. Esse tipo de idéia foi uma espécie de armadilha da formação. Então, fui para a faculdade de Filosofia e me dei conta de que eu teria de ter uma bela formação e comecei ler demais, a me interessar por muitas questões. Naquela época o currículo era muito longo, estudava-se espanhol, italiano, francês, português, literatura brasileira, portuguesa etc.; então foi uma espécie de armadilha, porque o estudo sufocou o escritor. Aconteceu que eu gostei dos estudos, me dediquei aos estudos com muito interesse e percebi que era necessária essa boa formação para o tipo de participação intelectual e política que eu queria ter. Sem querer, percebi que esse tinha sido um período mais ou menos cinzento na minha vida. Seria como um serviço militar que eu teria de prestar para ter acesso à carreira de escritor. A armadilha se agravou porque, em seguida, fui para os Estados Unidos onde encontrei uma cultura totalmente diferente da minha...
Você falou que foi antes à França?
Na França, um ano. Nos Estados Unidos é que foi longuíssimo. Lá, então, como professor, como profissional, me dei conta que eu tinha que preparar aulas, tinha que ter uma carreira profissional etc. Praticamente abandonei a escrita artística e, obviamente, me dediquei a uma escrita de tipo crítico, com a necessidade, inclusive, de me firmar profissionalmente. Nesse período, então, eu praticamente não escrevo, é um longo período de silêncio artístico. Quando volto, mais ou menos em 1968, é que começo a escrever um livro de contos e um de poemas, que saem em 70. Aí ocorreu um fenômeno muito curioso: eu tinha vergonha de ser escritor em sala de aula e tinha vergonha de ser professor quando estava num ambiente de escritores. Começou a aparecer uma espécie de esquizofrenia muito violenta na minha vida, por essa divisão muito nítida de campos: agora sou professor; agora sou escritor. Isso me dominou muito na década de setenta, apesar de eu publicar as coisas mais variadas (eu acho importante, inclusive, essa variedade na minha proposta de escrita). Então, é por volta de 1976, quando eu idealizo o romance Em liberdade, que eu descubro que não precisava ter vergonha de ser escritor, nem de ter vergonha de ser professor. Ao contrário de diversos membros da minha geração, eu tinha algo mais e era importante que eu fizesse com que esse “algo mais” atuasse na minha criação literária. Daí a idéia de utilizar “sem-vergonhamente” todos os conhecimentos que eu tinha, enquanto teórico, professor de Literatura, numa obra nitidamente artística que foi esse romance Em liberdade.
O processo criativo dos seus livros passa por muitas fases de elaboração? Poderia contar como escreveu um de seus livros?
Talvez o mais difícil de contar seja esse a que me referi agora, porque tem componentes vários muito específicos. Primeiro, há esse dado muito importante de ter me dito que eu não precisava ter vergonha de ser teórico e professor de Literatura. Isso fez com que eu trouxesse para a própria criação literária personagens da literatura brasileira, só que de uma forma criativa. A primeira idéia que veio à minha cabeça foi Cláudio Manuel da Costa, porque em 75 tinha havido o caso Herzog, e esse caso me interessou muito politicamente, como todas as questões, claro, que estavam em torno do caso Herzog.
É o caso do jornalista?
Exatamente. O caso do jornalista que foi encontrado enforcado no cárcere, mas com o joelho em cima de uma cadeira, indicando, portanto, que ele não tinha se suicidado, mas que tinha sido assassinado. Esse caso ficou muito na minha cabeça, juntamente com o fato de que, no mesmo ano, um irmão meu mais novo – exatamente aquele a que me referi, de cujo parto minha mãe morreu – tinha sido preso em Belo Horizonte, porque era secretário do Partido Comunista. Foi torturado e tudo isso levou a uma destruição quase completa da sua personalidade: ele tinha um casamento feliz, com três filhos... tudo foi por água abaixo... tudo isso me marcou profundamente, nos anos 74, 75 e 76. Para mim é muito difícil trabalhar o dado imediato na ficção, eu tenho um rechaço disso, não sei muito bem por que, mas comecei a buscar fatos que lembrassem essas situações. Eu me interessei muito – hoje me interesso menos, na época muito – pela chamada “Escola Mineira”, pelos poetas que escreveram em Minas um pouco antes da Inconfidência Mineira. Eu me lembrava muito bem do caso de Cláudio Manuel da Costa, que foi encontrado em estado semelhante ao de Herzog. Até hoje não se sabe se Cláudio se suicidou ou se foi assassinado. Eu tinha feito na época, também, a leitura de um livro de um historiador amigo meu: A devassa da devassa, que é certamente o melhor livro atual sobre a Inconfidência. Lá ele fazia algumas hipóteses sobre esse período, e percebi então que ali estava um bom manancial para ser trabalhado. Portanto, idealizei que o Cláudio Manuel teria deixado um diário íntimo e que eu o teria encontrado numa viagem a Ouro Preto; nesse diário ele fazia um relato sobre a Inconfidência Mineira em que dizia que necessariamente teria de ser eliminado. Para essa visão da Inconfidência, eu me vali muito de uma pequena devassa que houve em Minas, mesmo antes da chegada dos juízes do Rio de Janeiro. Essa pequena devassa, que é um documento pouco conhecido e sobretudo pouco estudado, dá indicações muito precisas sobre o ambiente, que era muito curioso do ponto de vista dramático. Eu me valeria, então, dessas devassas para trabalhar um pouco essas questões. Esse era o projeto que eu tinha. Cheguei a escrever umas vinte páginas. Mas percebi depois que aquilo seria pouco interessante, porque era muito distante no tempo; as pessoas não saberiam a que eu estava me referindo. De repente, bolei uma idéia: por que não um diário de Graciliano Ramos? Ele tinha escrito as Memórias do cárcere que terminam, obviamente, antes da liberdade. Abandonei todo aquele projeto... este seria muito mais ambicioso, seria uma espécie de reflexão sobre o autoritarismo no Brasil e a relação do intelectual brasileiro com esse autoritarismo, em primeiro lugar. Em segundo lugar, me interessava também porque nós estávamos passando pelo chamado período de abertura em que os exilados começavam a voltar etc. Também me interessava a questão da liberdade, mais do que a questão da prisão. Eu me dava conta que não existe na Literatura brasileira nenhum livro que trate de um intelectual e a autoridade. Foi dessa maneira que eu fui bolando. Tive a grande forma do livro: seria um diário íntimo, necessariamente, porque eu queria que tivesse um lado confessional, que fosse uma escrita de tipo confessional, porque era uma escrita que eu dominava melhor, em virtude da minha formação francesa – o récit francês, o Gide, a questão do diário. Então bolei essa grande idéia que seria um diário íntimo de Graciliano Ramos, do momento em que ele sai da cadeia até o momento em que sua família vem do Nordeste e, no meio desse percurso, ele tentaria escrever um livro sobre o Cláudio Manuel da Costa tentando provar que o Cláudio não havia se suicidado. Foi a maneira que eu encontrei de acoplar três situações históricas muito precisas: a relação de domínio português no século XVIII, a ditadura Vargas na década de trinta e, depois, a ditadura militar de 64, por ocasião do caso Herzog.
Qual é a sua relação com a escrita, com a linguagem?
No caso específico do projeto que acabei de relatar, só para dar continuidade, foi uma relação extremamente louca, porque, tão logo bolei o projeto, comecei a fazer mil pesquisas. Porque em 196, 1937, eu acabava de nascer... mas não vou falar das pesquisas, falarei só da escrita. Comecei a fazer pastiches de Graciliano Ramos; fiz pastiches e mais pastiches até o momento em que julguei que eu já poderia manter naturalmente uma escrita graciliânica. Eu diria que cada caso é um caso. Uma pessoa que desse uma olhada em cada um de meus escritos – em ficção, eu tenho um livro de contos e três romances – veria que nenhum conto meu se parece com outro. Para mim, é muito mais uma questão de buscar uma linguagem do narrador do que um estilo meu. Eu me preocupo muito pouco em ter um estilo meu. Há, inclusive, essa capacidade de despersonalização. Uma idéia que eu gostaria de deixar bem clara, e que acho importante em relação aos meus pares do momento, é que sou um escritor que não procura estilo. Uma investigação, mesmo superficial, dos meus textos vai indicar que cada um é escrito segundo um estilo. De uma maneira bem simplificada, eu diria que o livro de contos O banquete tem uma atitude oswaldiana, uma atitude antropofágica; o primeiro romance, O olhar, tem uma escrita talvez próxima do nouveau roman; o Em liberdade, já está claro, é uma espécie de remake da escrita de Graciliano Ramos; e o último, Stella Manhattan, é propositadamente um romance com uma escrita norte-americana, uma mistura de Faulkner e Hemingway. O gozado é que agora vou me interessar um pouco pelo meu lado italiano, da minha família do lado italiano, que é um lado recalcado... bem que eram, obviamente, imigrantes pobres. Eu não sei muito bem quem eram, como eram. Era uma família de Nápoles, Imparato, e do lado materno era uma família da Sicília, Farnese. Ainda vou elaborar mais esse lado.
O que é escrever?
Talvez uma tentativa de me compreender, compreender o outro e compreender as relações que se estabelecem numa comunidade, seja no sentido restrito – uma família –, seja num sentido mais amplo – uma cidade, um país, ou mesmo nossa situação dentro do mundo. Basicamente é um mecanismo de conhecimento: eu escrevo para conhecer; escrevo para saber um pouco mais a respeito de alguma coisa. Por outro lado, não há dúvida nenhuma, deve haver um mecanismo compensativo qualquer. Eu sou, normalmente, uma pessoa bastante reservada, uma pessoa, inclusive, bastante educada no relacionamento social e percebo que na escrita sou extremamente agressivo. Tenho uma escrita muito agressiva, então deve ser um mecanismo compensativo a funcionar no nível psicológico. Escrevo, sobretudo, por sentir a necessidade de passar para o outro uma visão do mundo que penso ser um pouco peculiar, um pouco particular, talvez um pouco mais rica por eu ter tido uma vida cheia de experiências, com viagens e tudo o mais. Acho, portanto, que seria uma mistura de conhecimento, saber, mecanismo de compensação e, finalmente, um certo amor ao outro.
Em seu específico trabalho de criação, prevalece a interrupção ou a continuidade? Há crises?
Diria que as rupturas são muito mais de gênero do que propriamente de trabalho. Acho que trabalho com uma continuidade, modéstia à parte, extraordinária. O que eu quebro muito é em gêneros. Eu me dedico, por exemplo, com uma certa continuidade, a fazer ensaios e paro; posso começar a fazer um romance e parar os ensaios; paro o romance e posso querer escrever um livro de poemas – que pode até fracassar. Há uma multiplicidade de gêneros que para mim é muito importante e que, obviamente, se orquestra num determinado continuum. Fica óbvio que se eu tenho controle conceitual do assunto, faço um ensaio; se tenho um controle dramático, ficção; se tenho apenas emoções, sentimentos sobre determinada questão, faço poemas.
Essas passagens de gênero são determinadas por quê?
São determinadas, em primeiro lugar, por contingências profissionais: quanto a isso não há dúvidas. Ganho meu dinheiro como professor e, nessa medida, tenho que ter uma certa consistência na minha produção ensaística, que pode ser para conferências, encomendas que me fazem etc. Em geral, paro tudo para fazer isso, porque preciso fazê-lo para dar uma certa continuidade ao meu trabalho. Por outro lado, essas mudanças de gênero são também uma espécie de “respiradouros”; acho que são os momentos em que respiro, em que me realimento para entrar num outro projeto. Por isso eu disse que na superfície há continuidade exemplar, mas nas profundezas há esses momentos necessários de respiro. Por exemplo, desde que terminei meu último romance, Stella Manhattan, não consigo realmente imaginar, idealizar um outro romance. Esses momentos, no meu caso, não são de frouxidão, por assim dizer, porque fiz pelo menos quatro ensaios este ano e ensaios bastante pesados. Então, não são momentos, que eu diria, de quebra completa, são momentos muito mais de deslocamento de escrita: desloco as escritas e, com isso, consigo ter uma obra muito vasta, apesar de ter uma atividade profissional muito intensa: sou professor, oriento teses, dou cursos etc.
Há momentos felizes para escrever?
Há: o momento em que descubro a forma! Nesse momento começo a escrever, em geral, quase sem parar. Tenho uma técnica muito curiosa: eu escrevo trinta, quarenta vezes a mesma página. No momento em que termino aquela página, ela está terminada. Nunca reescrevi um livro.
Quando escreve, é a vontade que puxa a escrita? É a neurose, o prazer da inteligência, da fantasia?
É a imaginação, sem dúvida. Eu tenho muito a ver no outro. Neurose, acho que pouco; fantasia, idem. Observação, verossimilhança de linguagem, isso sim. Gosto que a linguagem desenhe bem o personagem, desenhe bem a figura para que eu não precise descrevê-lo fisicamente. Sobretudo, reescrevo demais; portanto é disciplina, organização, busca da palavra perfeita, da palavra justa, da palavra exata.
Qual é o papel que o imprevisto desempenha em seu trabalho criativo?
Pouco, um papel muito restrito. Como eu disse, o imprevisto se contrapõe ao trabalho.
Existe, analogamente ao “prazer do texto”, o prazer de escrever? Poderia descrevê-lo?
É uma espécie de compulsão ao trabalho, que eu pretendo que seja meticuloso e ao mesmo tempo grandioso. Acredito que quanto mais meticuloso você é, mais grandiosa é a obra. Em suma: quanto mais burilada estiver uma palavra, quanto mais justa estiver aquela palavra no texto, mais grandiosa será a obra. Eu não acredito que uma obra se torne grandiosa por ter grandes panoramas, mas exatamente porque nela todos os detalhes são trabalhados e são ajustados com tamanha perfeição, que adquire uma certa grandiosidade que é pouco comum entre os homens. É essa grandiosidade que procuro e essa busca da grandiosidade me dá muito prazer.
O Graciliano não passou inutilmente...
Claro! Nem João Cabral de Melo Neto, nem Valéry, nem Mallarmé.
Onde encontra estímulos e pretextos para escrever? Poderia exemplificar?
Acho que já disse... Existe um problema no trabalho que eu ainda não consegui resolver. Existe em mim um prazer de trabalhar: eu não entendi isso ainda muito bem, mas eu gosto de trabalhar e sobretudo com a linguagem. Isso me dá um enorme prazer, é como se a minha vida estivesse tendo sentido. Esse sentido da vida dado pelo trabalho – o que seria até um pouco próximo de uma ética protestante de trabalho – me gratifica muito, me estimula muito a continuar trabalhando.
Viagens, acontecimentos?
Pelo contrário. Vivo intensamente! Quando estou viajando, quando existe algum acontecimento importante na minha vida, eu vivo intensamente esse acontecimento e sou muito pouco literato.
Poderia indicar um momento extremamente gratificante ou de grande frustração em sua vida de escritor?
O meu primeiro livro que foi bem recebido de uma maneira geral foi Em liberdade. Foi um livro que fiz em silêncio; ninguém sabia que eu o estava fazendo; passei cinco anos pesquisando etc. A redação foi rápida, mas para as pesquisas gastei cinco anos e em silêncio. Foi a primeira vez que eu ganhei um prêmio, o Prêmio Jabuti. Isso me deu uma grande satisfação porque eu não tinha segurança sobre o livro.
Não tinha confiança em si mesmo?
Em mim eu tenho. Não tinha no livro e nos leitores.
Qual é o livro de outros autores que gostaria de ter escrito?
Cada fase da minha vida é um livro. Já tive várias: a fase de Gide, a de João Cabral, a de Carlos Drummond, Mallarmé, Graciliano e, atualmente, os livros que eu gostaria de escrever são os de Mário de Andrade. É o autor que mais me entusiasma no momento.
Como se sente dentro da Literatura brasileira? Qual é seu papel?
Uma das coisas que acho importante junto aos meus pares é que sou, certamente, o único escritor-romancista que mantém uma reflexão constante da literatura: isso me diferencia de imediato de todos os demais... Eu tinha vergonha disso, hoje assumo nitidamente. Por outro lado, em virtude de ter uma obra com vários gêneros, é difícil meu encaixe; não sei onde me situo, ao passo que Antônio Torres, Loyola Brandão se situam facilmente, pertencem a uma determinada geração, têm um determinado tipo de proposta, de escrita etc. Se se usassem critérios geracionais e coisas desse gênero, não sei onde me colocariam. Sou um pouquinho mais velho do que eles, no entanto, em relação à escrita, sou muito semelhante a eles. Tenho muito mais preparo teórico do que eles, por um lado, e, por outro, eles possivelmente têm um tipo de participação no nível de vida literária muito maior do que o meu, porque eu sou uma pessoa um pouco tímida nisso. Quanto à temática, não vejo grandes diferenças; os temas que abordo, as questões de que trato são as mesmas que se encontram entre meus pares.
Como julga a Literatura contemporânea, a desse pessoal que escreve hoje? Qual sua visão como crítico.
Eu não gostaria de julgá-la no momento. Acho que nós passamos por um período de florescimento da ficção muito rico; esse período é um pouco desvairado, um pouco anárquico. Acho que qualquer julgamento, neste momento, poderia, inclusive, esclerosar determinados potenciais cuja vitalidade não conhecemos ainda. O julgamento deve ser feito mais tarde. Mais importante do que fazer um julgamento seria, para a crítica, fazer um mapeamento das coisas, tentar ver que tipo de harmonia está acontecendo. A nossa geração é muito diferente da geração de 30, que tinha uma proposta coletiva, a nossa não. Acho que existe uma escrita de tipo político que você encontra no Ignácio, no Ivan, no Márcio Sousa, em mim mesmo, mas que é muito diferente em cada autor. Você tem uma escrita do feminino que se encontra em Nélida Piñon, em Lya Luft, em Adélia Prado, mas, também, são muito diferentes entre si. É uma situação completamente diferente da dos anos 30, quando você tinha um romance de tipo social em que todos estavam trabalhando com uma estética realista-naturalista; então, havia mais ou menos uma concordância... Há temas, há escritas, há preocupações que são comuns; no entanto, não há essa confluência para uma determinada linha, uma determinada direção. Pelo contrário, há uma espécie de explosão anárquica.
Dentre as palavras seguintes, escolha três e diga alguma coisa sobre elas: amor – cidade – poder – povo – solidão – solidariedade – prazer – violência – amizade – noite – silêncio.
Poder, solidariedade e prazer. Poder: uma das minhas preocupações básicas é a análise da estrutura de poder, isto é, de compreensão de estruturas do poder, de compreensão do que seja dominação, do que seja o controle de um sobre o outro, de tudo isso que me fascina enormemente. Sejam as macroestruturas do poder, o poder nacional por exemplo, o poder metropolitano de dominação da cultura brasileira, que é uma cultura dependente, ou o poder de Brasília, o controle do cidadão, a violência, as perseguições, e a falência desse poder; sejam as microestruturas de poder, a presença do vizinho delatando as traquinagens das crianças etc. No livro Liberdade, eu mexo muito com essas microestruturas de poder quando invado a privacidade das pessoas. O que é privacidade? Nada mais é do que uma microestrutura de poder. Então, eu diria que se pode percorrer de maneira quase linear a questão ou o tema do poder por tudo, mais ou menos, que tenho escrito. Solidariedade: eu optei por ela entre amor e amizade; não sabia se escolhia essas duas palavras, então, escolhendo nem uma nem outra, escolhi solidariedade porque acho que englobaria as duas. Tanto no amor quanto na amizade o que preocupa, o que é importante é um laço que se estabelece; se esse laço tiver um componente de atração sexual, caminha para o amor; se tiver um componente de admiração, de carinho e de interesse afetivo, caminha para a amizade. Então, escolho solidariedade porque resolve uma das coisas constantes na minha vida – já que eu critico constantemente a noção de poder. É que a noção de poder atrapalha a solidariedade entre os homens. O ideal – aqui eu lembro um antropólogo francês – seria a possibilidade de uma utopia, de uma “sociedade sem Estado”, sem poder coercitivo, uma sociedade portanto em que todos fossem solidários, de uma certa maneira, àquilo que o Oswald de Andrade chama “o matriarcado de timorão”. Prazer: apesar de ser uma pessoa extremamente racional, com uma lógica quase que imbatível, com uma capacidade de argumentação bastante clara, tenho um outro lado que é o lado do sensualismo que não aflora a quantidade de vezes que eu gostaria que aflorasse. Mas não há dúvida nenhuma de que minha relação – seja com as coisas, seja com os homens – é muito mais sensual do que racional.
Escreve metodicamente todos os dias?
Não. Leio todos os dias.
A rotina cotidiana como e quanto influencia sua obra criativa?
Não atrapalha nem ajuda. A única coisa é que eu fujo da administração.
Como conseguiu publicar seu primeiro livro?
O primeiro são dois livros, afinal: o de contos e o de poemas. O de poemas foi custeado pelo DCE (Diretório Central dos Estudantes) da Faculdade de Filosofia e Letras. Nós tínhamos como projeto – eu fazia parte do grupo cultural do DCE – uma revista, a Mosaico, da qual saíram alguns números e, também, a publicação desse livro que se chama Quatro poetas. Já o livro de contos foi publicado pela editora Itatiaia. Ivan e eu fizemos uma subscrição entre amigos, começamos a dizer nas diversas colunas de jornais que queríamos publicar um livro e que isso dependeria da ajuda dos amigos, dos companheiros. Na época tínhamos acesso muito fácil aos jornais de Belo Horizonte. Foi feita uma lista; tendo chegado a um determinado número de assinaturas, a editora deslanchou a publicação do livro Duas faces.
Alguma editora propôs-lhe escrever com salário fixo?
Não.
Aceitaria a idéia?
Dependendo do salário fixo.
Aceitaria os vínculos do editor?
Sempre aceito diálogo com quem quer que seja, um editor, um revisor, seja até com um editor no sentido americano. Aceitaria um diálogo, mas nunca aceitaria uma imposição: isso nunca aceitaria. O livro Stella Manhattan teve uma revisão muito cuidadosa por parte da editora Nova Fronteira; o livro tem muitas palavras estrangeiras e eles queriam grifá-las. Eu falei: “De jeito nenhum! Estou explodindo o português de propósito. Se eu estou explodindo o português não posso, de repente, marcar umas palavras como portuguesas e outras como estrangeiras”. Houve uma discussão e eu acabei ganhando, mas, ao mesmo tempo, houve uns três ou quatro detalhes que modifiquei.
Por que essas palavras inglesas no livro?
Porque o livro se passa em New York. Tentei explodir o português porque o português hoje, ao meu ver, não tem mais pureza. Assim como o Mário de Andrade explodiu o português com a linguagem indígena, eu tentei explodir o português com as linguagens da contemporaneidade. A ação do livro se passa em New York e tenho personagens que são brasileiros, americanos e hispano-americanos. Eu não queria marcar demais, porque se tratava de uma situação cosmopolita, em New York, a qualidade da língua que já não poderia ser mais dada como pura.
Acredita que a publicidade seja importante para o lançamento de um livro ou pensa que um bom livro não necessite dela?
Nessas questões, em geral, sou uma pessoa equilibrada. Acho que é preciso, mas não muito. É bom uma certa publicidade, mas, para mim, mais importante do que a publicidade é a boa recepção, quer dizer, a boa acolhida por parte da crítica, por parte dos leitores. Isso me gratifica mais do que ver que meu livro está tendo uma grande publicidade. Pode ter uma grande publicidade e uma má acolhida... aí eu ficaria desesperado...
Quando escreve, pensa no editor, nos leitores, nos críticos, nos colegas?
Quando escrevo, em geral, se eu penso, penso nos meus contemporâneos, mas de uma maneira muito vaga.
Não tem uma figura ideal de leitor?
Não, quer dizer, a figura ideal de leitor seria eu mesmo. Eu seria meu leitor ideal.
O sucesso de uma obra depende de quê, de quem?
Depende de que sucesso estamos falando, porque hoje, com a questão do best-seller, a questão do sucesso é mais complicada. Tem o sucesso de público, de mercado, e tem o sucesso que eu chamaria “de crítica”, na falta de outra palavra. O sucesso de crítica depende, antes de mais nada, da boa qualidade do livro; mesmo que não tenha unanimidade na recepção, será bem acolhido, vai sofrer diversas releituras com o correr do tempo e essas releituras, de certa forma, definirão a qualidade do produto. Do ponto de vista do mercado, já é mais complicado; aí acho que depende de muitas coisas. Depende, em primeiro lugar, de uma escrita mais fácil, de uma escrita não-elíptica, de uma escrita com a taxa de redundância um pouco grande. Depende, ainda, de se tratar de temas que sejam da atualidade – atualidade sem aspas – temas do momento; depende ainda de uma certa presença física do escritor nos meios de comunicação de massa – televisão, jornais, noite de autógrafos etc. Uma pessoa que não tenha uma presença física predominante, dificilmente, no Brasil, será um best-seller.
Pensa haver, em seu trabalho criativo, alguns vínculos, laços, temores em dizer tudo, em escrever?
Não. Se por acaso, algum dia, eu escrever algum livro que eu tenha medo de publicar, não vou rasgar esse livro, vou guardá-lo para ser publicado depois da minha morte.
Então, tem medo de se revelar, talvez?
Não. Eu ainda não escrevi uma autobiografia. Medo de me revelar através da ficção, não.
Gostaria que traçasse um auto-retrato de si como homem e como escritor?
Um detalhe interessante ao meu respeito é que eu pertenço a uma geração que procurou combinar o trabalho universitário com o trabalho propriamente criativo. Nesse sentido, então, de imediato há uma determinada esquizofrenia profissional, no meu caso. Tanto sou um professor, portanto, um teórico, um leitor de literatura, como um ensaísta. Tenho trabalhos sobre diversos autores, sobre questões de caráter estético e literário, como ainda tento ser escritor – e mesmo como escritor também há uma diversificação. Vou tanto para o lado da ficção quanto para o lado da poesia. Nesse sentido, me defino por uma diversidade de escritas. Essa diversidade, no entanto, acaba por encontrar uma certa harmonia, não é caótica. Procuro buscar uma harmonia. Eu, leitor de mim mesmo, percebo que há determinados temas, determinadas questões, determinadas obsessões que são persistentes na minha escrita, independendo do gênero de que eu estou tratando. Essas obsessões e temas tanto apontam para o existencial quanto para o político. Quando apontam para o existencial, é uma tentativa de configuração de um indivíduo que não se molda aos padrões e aos modelos de comportamento da nossa época; quando aponta para o político e o social, trata-se de uma crítica, ao meu ver, bastante radical, bastante contundente, de questões relativas ao poder enquanto exercício de coerção. Sou professor, tenho ensinado em universidades por mais ou menos 25 anos e tenho um relacionamento muito bom; esse relacionamento produziu trabalhos, teses de mestrado e de doutorado. Julgo que parte da minha atividade foi passada para esses, com perdão da palavra, discípulos, de tal forma que essa diversidade, a que me referi, se torna anda mais diversa. No plano individual, tive uma vida bastante tranqüila até os 20, 22 anos, uma vida provinciana numa pequena cidade de interior de Minas; depois uma vida um tanto ainda provinciana, mas bastante agitada do ponto de vista boêmio, em Belo Horizonte. Em seguida, uma longa experiência no estrangeiro. Acho que entre os meus companheiros de geração, ninguém tem uma experiência no estrangeiro tão longa e definitiva como eu tive. Não só morei longamente nos Estados Unidos e na França, como ainda morei algum tempo no Canadá, portanto, tenho um conhecimento bastante bom de sociedades diferentes da nossa. Talvez isso tenha trazido um amadurecimento para mim, e sobretudo, uma certa simpatia por tudo aquilo que é diferente de mim. Acho que uma das características, inclusive, da minha obra é esse interesse por aquilo que é diferente para mim, pelo que eu não sou, pelo que eu gostaria de ser, pelo que eu gostaria de ter sido, e assim sucessivamente. Esse gosto pelo outro, esse prazer pelo outro, ao meu ver, é responsável por uma das características minhas e, acredito, bastante particular, bastante específica, que é de ser escritor praticamente sem estilo. Um escritor que nunca procurou dar uma grande coerência a uma escrita que seria a expressão da sua personalidade. Acho que minha personalidade também – ainda para complicar mais o esquema inicial da diversidade – é bastante (por falta de outra palavra) esquizofrênica, quer dizer, manipulo várias escritas que são muitas vezes manipuladas até mesmo usando a primeira pessoa e, no entanto, essa primeira pessoa não mantém, como uma outra primeira pessoa, nenhuma coerência. Acho que esse esforço é o signo sob o qual se inscreve o tipo de trabalho que eu faço, o tipo de vida que eu levo: a procura de uma harmonia dentro da diversidade. Certamente, uma das primeiras leituras pesadas que fiz foi a leitura de Fernando Pessoa, e o primeiro pseudônimo que eu tive – curiosamente, no início, eu tinha vergonha de escrever e escrevia com pseudônimos – foi Antônio Nogueira (todo mundo sabe que se trata de Fernando Nogueira Pessoa). É curioso o fato de eu ter aproveitado os nomes abandonados por Fernando Pessoa. Eu criei um outro heterônimo, vale dizer: Antônio Nogueira, rapaz de Minas, provinciano, que lia Fernando Pessoa.