GODOFREDO DE OLIVEIRA NETO
NA SALA DE AULA
APLICAÇÃO DE PROJETOS PEDAGÓGICOS
COM LIVROS DO ESCRITOR
O BRUXO DO CONTESTADO NA SALA DE AULA
1 - COMO NASCEU ESSE PROJETO E AS DIFICULTADES PARA IMPLANTÁ-LO COMO LEITURA NO ENSINO MÉDIO
A aplicação do livro "O Bruxo do Contestado" de Godofredo de Oliveira Neto para as turmas do colégio estadual X no município do Rio de Janeiro ( o nome aqui foi omitido para preservar a privacidade dos alunos e professores que participaram dessa iniciativa) constituiu um desafio que foi levado a cabo com grande êxito.
Antes do início do projeto foi feito uma pesquisa sobre a importância da Guerra do Contestado com o objetivo de convencer a diretoria do colégio de que a aplicação desse livro ofereceria um ganho excelente tanto em Língua Portuguesa quanto na área de história do Brasil.
Nas últimas três décadas, o trabalho de pesquisa tem feito avançar o conhecimento sobre o movimento do Contestado em muitos campos, tanto por autodidatas como por integrantes do meio acadêmico mais especializado. Como organizadora do projeto, verifiquei que foram empregados novos acervos documentais, revisadas e reanalisadas antigas fontes, novas perguntas foram lançadas sobre o passado. E isso resultou em uma série de novas conexões, procurando uma mútua inteligibilidade entre o passado e o presente, refletindo sobre a permanência – nos dias de hoje – de estruturas sociais, econômicas e culturais excludentes, de meios de reprodução de desigualdades. Alguns mitos historiográficos foram superados. Encontrei dezenas de teses e dissertações, nas áreas de História, Literatura, Geografia, Antropologia, Sociologia, Educação e até em Ciências Sociais Aplicadas, como Direito e Serviço Social, que repensam as experiências vividas há mais de 100 anos pelos sertanejos do Contestado.
No entanto, como outras áreas de avanço do conhecimento historiográfico, há um descompasso entre a produção acadêmica e o domínio da sociedade sobre este tema. Esse descompasso ocorre nas políticas públicas de memória e no ensino de História predominante nas redes de Ensino Médio. Infelizmente, o número de pessoas que ouviram falar desse sangrento e dramático conflito nas páginas da história brasileira, mesmo com formação universitária, é elevado. Algumas jamais ouviram falar sobre o movimento do Contestado. Entre os que possuem alguma informação, é muito comum a afirmação de que “foi um segundo Canudos, com fanáticos e ignorantes”. Há outros que apenas se contentam em defender um “heroísmo” do Contestado, como uma jornada épica de nossos antepassados, sem definir claramente pelo que aquelas pessoas estavam lutando. Como qualquer movimento social de grande envergadura, que resultou em conflito de grandes proporções, o Contestado é um repositório de experiências populares e serve para refletirmos as relações entre o povo pobre, as elites e o Estado no Brasil.
Eu e minhas colegas professoras do colégio, que participaram da idealização e confecção deste projeto, acreditávamos piamente no potencial do livro de Godofredo como ferramenta pedagógica e que agora era hora de procurarmos um novo tipo de divulgação que é nossa responsabilidade, como professoras e pesquisadores. Como traduzir ao grande público escolar as últimas reflexões e contribuições sobre o movimento sertanejo do Contestado?
Antes de mais nada, tomamos consciência que precisámos seguir os conselhos do mestre Marc Bloch (1996) que defendia que os historiadores deveriam “saber falar aos doutos e aos escolares” indistintamente .(1996, Apologia da História ou o Ofício do Historiador, p.46).
Não devíamos e não podíamos ficar restritos ao meio acadêmico mais especializado se nossos professores e nossos livros didáticos continuam trabalhando com muitas limitações sobre esse tema nas redes escolares de Ensino Médio. Sabíamos que , por mais abundante que fosse a historiografia à nossa disposição e mais numerosas ainda as teses, dissertações e monografias sobre o movimento do Contestado que levantamos através de exaustivas pesquisas e leituras, essa temática não conquistaria os alunos e nem convenceria a diretoria do colégio se não construíssemos parâmetros inovadores para a atualização dos docentes que e convidaríamos a se envolverem nesse projeto e conseguíssemos, concomitantemente também, produzir um material didático à altura deste desafio.
Convém aqui ressaltar que na maioria dos livros didáticos esse evento histórico é ausente ou pouco esclarecedor . Contatamos sempre em relação ao estado do material didático e paradidático com foco na Guerra do Contestado, disponível para a rede escolar e, em sua maioria, distribuído pela Secretaria Estadual de Educação e pelas Secretarias Municipais, frequentemente repete os preconceitos da antiga historiografia e da crônica militar sobre os sertanejos, sendo desqualificados como “fanáticos”, “jagunços” e “ignorantes”. Igualmente grave é a apropriação oficial da memória do Contestado por órgãos estaduais e municipais ligados ao turismo que, ao mesmo tempo em que exalta certo “heroísmo” dos sertanejos, aplaude a construção de uma sociedade de imigrantes e pequenos agricultores de origem europeia, como a “consequência” do conflito, naturalizando a subalterização da população cabocla e fazendo apologia de uma “modernização” que perpetuou desigualdades.
A oportunidade de ouro que surgiu e convenceu finalmente a diretoria do colégio a aceitar que esse livro fizesse parte do programa surgiu de forma bastante inesperada e surpreendente. A princípio, tentamos convencê-la utilizando o argumento de que esse livro fazia referência a um importante acontecimento histórico pouco difundido nos livros didáticos fornecidos aos alunos pelo colégio. Mas ela sempre alegava que havia outros fatos históricos mais ligados ao estado do Rio de Janeiro que mereciam maior importância. Até que no dia 21 de março, ocorreu um fato marcante : era o dia em que se comemorava o Dia Internacional da Síndrome de Down e esse dia era particularmente sensível para uma das diretoras do colégio pelo fato de que seu próprio filho era portador dessa síndrome e duas professoras da escola possuíam sobrinhos possuidores dessa síndrome matriculados ali. E nessa data o colégio aproveitava para reunir pais e educadores em seminários e encontros de esclarecimento sobre a inclusão dessas crianças na escola, promovendo troca de ideias e debates entre os participantes, envolvendo o preconceito e a forma errada e a correta de educar essas crianças. Vislumbramos uma ocasião perfeita para mencionarmos o livro devido à personagem Rosa, a narradora e única filha do personagem principal do livro, Gerd Rümel. Uma das professoras extraiu do livro frases com forte apelo emocional, como a que lemos abaixo, quando se utiliza a palavra "retardada", que traz consigo uma alta carga de preconceito e de inferioridade, colocando essas frases, identificando junto com elas o livro e o escritor, nos slides que passou no auditório para a comunidade escolar.
O sucesso e a curiosidade despertada pela leitura dessas frases foi imediato no auditório. Muitas mães começaram a discutir e a colocar em evidência muitos dos acontecimentos terríveis e comentários maldosos que presenciavam na própria família com relação aos filhos e isso gerou debates acalorados. Algumas chegaram a anotar as frases extraídas do livro e pediram à professora responsável que o mostrassem ao auditório. Claro que minhas colegas aproveitaram a deixa e começaram a elogiar o livro para a diretora exaltando suas outras qualidades. A diretora, que até o momento sequer se dignara a ler o livro, começou a folheá-lo na ocasião e pediu à minha colega que o emprestasse para levar para casa e ler. Mais que depressa a colega consentiu e duas semanas depois o quadro havia mudado e finalmente, após uma reunião com as duas professoras da disciplina de Língua Portuguesa e História que tinham apresentado o projeto pedagógico delineado por mim elas, no qual trabalhariam em conjunto, analisou na reunião todas as etapas do projeto e acabou por aprovar sua implementação sem ressalvas.
Finalmente estava tudo pronto para começarmos a influenciar nossos alunos a lerem o Bruxo do Contestado. Vitória, afinal !. Mas antes tivemos que fazer uma preparação prévia. E ela começou primeiro com um mergulho por parte das próprias professoras e até da diretora na história da Guerra do Contestado a partir dos materiais que eu pesquisara de antemão. Haja vista que averiguei que muitas vezes ocorreu um descompasso da produção acadêmica com o ensino da história desse acontecimento pois ele tem origem em obras gerais de autores consagrados no meio acadêmico, que foram muito influentes na formação de professores. Essas obras gerais tendem a generalizar movimentos, apontados como episódios secundários e marginais da narrativa central, frequentemente focada na política institucional e no mundo urbano das capitais. Este é o caso de Bóris Fausto e sua “História do Brasil”, obra originalmente publicada em 1994, com várias reedições. Em um livro de 650 páginas, o autor dedica dois parágrafos para tratar do Contestado, que é relatado como um movimento social que “combina religião com descontentamento social” (FAUSTO, 1994, p. 296).
CLIQUE NA FOTO DA CAPA DO LIVRO DE BORIS FAUSTO PARA SABER MAIS SOBRE A OBRA
No texto, há incorreções factuais, como a de que os sertanejos rebeldes eram chefiados por um “Coronel”. O autor não esconde sua tese central. O conflito social principal na Primeira República estava no meio urbano, no nascente operariado, que lutava por reivindicações “sem cunho religioso”. A religiosidade dos movimentos sociais rurais aparece no texto como um arcaísmo.
Na mais recente obra de síntese histórica, “Brasil: uma biografia”, de Lilia Schwarcz e Heloísa Starling (2015), o movimento do Contestado é apenas citado como um dos muitos movimentos rurais que combinaram “religião com descontentamento social”; mas, ao contrário de Canudos – que possui uma descrição de três páginas, no livro de 694 páginas não há um parágrafo sobre o movimento do Contestado.
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Eu e minhas colegas tínhamos plena consciência que a nossa responsabilidade era grande. Pois tão importante quanto a inovação e a atualização dos conhecimentos que tínhamos que possuir para assumirmos de cabeça esse projeto e colocá-lo em prática, levando a comprovação da nossa hipótese de que esse livro agradaria a nossos alunos, teríamos que nos certificar que o processo que construiríamos primeiro junto aos colegas professores que fariam parte dele e depois com os alunos, teriam sentido e inteligibilidade comprovadas. Além disso ele seria capaz de despertar nos alunos adolescentes da turma do 8º período do Ensino Médio, curiosidade e a motivação suficientes para os conduzir a mergulhar na leitura e na interpretação correta que esperávamos deles sobre a obra.
Ao final, logramos obter um êxito melhor do que esperávamos, fruto do diálogo permanente e troca de impressões e ideias para superação dos obstáculos que surgiram estabelecido entre a organizadora, professores-pesquisadores e alunos está relatado na obra.