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POESIA ÁRABE MODERNA

Texto de Joselia Aguiar
jornalista, especializada na cobertura de livros da Follha de São Paulo. 

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    Em 2005, fizemos na finada EntreLivros uma edição especial só sobre cultura árabe. Foi quando Michel Sleiman, autor de textos incluídos no tal volume, me contou de Adonis (pronuncia-se como oxítona), considerado por muitos o maior poeta árabe da atualidade e até então nunca traduzido por aqui.  Quer dizer, Sleiman já trazia Adonis para o português por conta própria mas uma edição desses poemas não era prevista.

     Via Adonis como um dos mais cotados candidatos ao Nobel e isso só aumentava minha curiosidade –não tenho planos de aprender árabe nessa encarnação e confesso que nunca busquei edição em francês. Ano passado, dias antes de sair o prêmio para o sueco Tomas Tranströmer,  procurei Sleiman com a expectativa de que Adonis venceria e tive a notícia de que estava a caminho essa antologia da capa ao lado. Chegou agora às livrarias, pela Companhia das Letras.

    As pessoas fazem às vezes muita confusão quando pensam ou falam em mundo árabe. Nem sempre entendem que :

1- a cultura árabe é anterior ao islamismo;

2-o islamismo chegou a culturas não-árabes;

3-os que professam a fé islâmica não são necessariamente radicais (embora muitos o sejam);

4- há árabes ateus, cristãos, até evangélicos e judeus (!);

5-na história, houve épocas de intenso e pacífico convívio, como quando Córdoba, na Andaluzia ocupada por árabes, judeus e cristãos, era considerada o ornamento do mundo, ali pelo século X.

       A imprensa nem sempre ajuda a desfazer mal-entendidos, muitíssimo pelo contrário. E mesmo quando o jornalista sabe disso tudo –eu, no caso– não tem às vezes como evitar que 1- a capa do tal volume saísse com uma chamada que dizia algo como “A fé une o mundo muçulmano” (o que não é exatamente errado, mas provoca atrito com o chapéu,  o enunciado que vinha logo acima, “Para entender a cultura árabe”) e 2- parte da iconografia incluísse imagens da cultura persa, com quem os árabes tiveram história de invasão e conflitos, sem que isso fosse explicado nas páginas (melhor não entrar em detalhes sobre todo o debate que se deu com a equipe que cuidava da iconografia). Não são problemas de pouca monta, mas, numa discussão editorial séria como essa, acaba-se por ser chamado de preciosista, de novo por causa das tantas generalizações e preconceitos que existem, fazem parte do senso comum.

   Adonis, que é sírio, tem também ascendência libanesa, cidadania que adotou a certa altura, quando o tempo fechou no país onde nascera em 1930 (região que vive outro turbilhão agora). Anos depois, radicou-se na França.  Quase sempre é apresentado como “poeta pagão” e “poeta do mundo”; foi um renovador da poesia árabe, modernizou-a com versos livres e sem rimas. Rompeu assim uma tradição milenar, que remonta à época pré-islâmica, quando os versos eram suspensos em tecidos nos grandes mercados –“Os Poemas Suspensos”, antologia traduzida por Alberto Mussa, saiu pela Record em 2006, capa à direita. O leitor deixará o blog feliz se conseguir se recordar de outro poeta árabe traduzido para o português e avisar nos comentários. Traduzir poesia é difícil, temos pouquíssimos tradutores de árabe no país (contei certa vez apenas cinco) e edições de poesia árabe não costumam ser comercialmente atrativas para as editoras.

    A poesia é (ou era) tão presente na vida árabe que, como contou Adonis e Amin Maalouf ao se recordarem da infância na ótima mesa da Flip em que trataram de cultura e política, os versos costumavam ser guardados de memória, aos montes, e ditos em casa, entre parentes e amigos, como parte do dia-a-dia. Não foi pouca a recitação no encontro com Adonis na Livraria Cultura, em São Paulo, dias atrás, quando leu seus poemas em árabe, a versão em português a cargo de Michel Sleiman e de Safa Jubran, também tradutora e outra especialista que conheço desde a época remota da EntreLivros.

    Encerro o post com essas belezas, trechos de “Guia para viajar pelas florestas do sentido”, incluído na nova antologia:

 

O que é o caminho?

anúncio de partida

escrito em folhas que o pó desenhou.

 

O que é a árvore?

lagoa verde cujas ondas são o vento.

 

O que é o vento?

alma que não quer

habitar o corpo.

 

O que é a morte?

carro que leva

do útero da mulher

ao útero da terra.

 

O que é a lágrima?

guerra perdida pelo corpo.

 

O que é o desespero?

descrição da vida na língua da morte.

 

O que é o horizonte?

espaço que se move sem parar.

 

O que é a coincidência?

fruto na árvore do vento

caindo entre as mãos

sem se saber.

 

O que é o não sentido?

doença que mais se propaga.

 

O que é a memória?

casa habitada só

por coisas ausentes.

 

O que é a poesia?

navios que navegam, sem portos.

 

O que é a metáfora?

asa aliviando

no peito das palavras.

 

O que é o fracasso?

musgo boiando no lago da vida.

 

O que é a surpresa?

pássaro

que escapou da gaiola da realidade.

 

O que é a história?

cego a tocar tambor.

 

O que é a sorte?

dado

na mão do tempo.

 

O que é a linha reta?

soma de linhas tortas

invisíveis.

 

O que é o umbigo?

meio caminho

entre

dois paraísos.

 

O que é o tempo?

veste que usamos

sem poder tirar.

 

O que é a melancolia?

anoitecer

no espaço do corpo.

 

O que é o sentido?

início do não sentido

e seu fim.

 

***

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