

LIVROS
Texto da Profª Vera Lúcia Lopes Dias
Sérgio Sant´anna nasceu no Rio de Janeiro em 1941, e foi considerado por muitos dos seus pares como o pós-modernista mais importante da literatura brasileira, completaria 50 anos de carreira em outubro do ano passado. Segundo Sergio me contou em um de nossos bate-papos pelo face, quando lhe perguntei se ele começou a ler cedo, ele me contou que foi na biblioteca da casa dos pais que adquiriu o gosto pela leitura, embora sua mãe fosse muito severa e insistisse da mãe em bloquear o acesso a títulos supostamente não adequados à sua idade (ele falava em tom de pilhéria comigo sobre um Index católico que se encontrava em uma das estantes da sua casa). Monteiro Lobato foi o primeiro escritor que lhe despertou a tenção. Quando tinha 12 anos, mudou-se para a família para a Inglaterra, onde aprendeu a ler em inglês, língua em que leu autores beat ainda na adolescência. es que Citou também dois autores importantes, Franz Kafka e Machado de Assis declarando que a leitura dos livros deles também o influenciaram.
Segundo consta em diversas matérias de jornais que consultei como O Globo e a Folha de S. Paulo, ele foi vencedor de diversos prêmios, incluindo o Jabuti por O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1986), pela novela Amazona (1986) e o romance Um crime delicado (1997), que foi adaptado para o cinema por Beto Brant em 2005.
Quando voltou ao Brasil, se mudou para Belo Horizonte alguns anos depois , onde cursou a faculdade de Direito da UFMG, e em seguida voltou para a Europa para concluir sua formação. Passa o 1968 em Praga, onde testemunha as revoluções sociais, e entre idas e vindas volta a viver no Rio de Janeiro em 1977, quando se tornou professor da Escola de Comunicação da UFRJ, onde permaneceu até 1990. Antes disso, também trabalhou na Petrobras e na Justiça do Trabalho. Depois dessas passagens, passou a se dedicar exclusivamente à literatura, contribuindo para os principais jornais do País (inclusive o Estadão).
Pelo que consultei em pesquisas em diversas fontes , ele escreveu mais de 20 livros. O seus contos deram voz a uma geração, e através deles se tornou um dos contistas mais respeitados do Brasil. Publicou o primeiro deles, O sobrevivente (1969), de forma independente, com dinheiro emprestado do pai — que segundo consta em uma de suas entrevistas ao Jornal O GLOBO em 2016, ele nunca pagou de volta —, e teve sucesso imediato.
Antes de lançar seu primeiro conto, ele que recebera uma bolsa de pós-graduação em ciências políticas em Paris, participou das passeatas de Maio de 1968 e da Primavera de Praga. Depois, passou oito meses em um programa de formação de autores nos Estados Unidos, e publicou mais três livros nos anos 1970: a coletânea de contos Notas de Manfredo Rangel, repórter (1973) e os romances Confissões de Ralfo (1975) —considerada sua obra prima, em que um escritor decide compor uma autobiografia imaginária com episódios inverossímeis— e Simulacros (1977).
Sua obra, tipicamente carioca (apesar de ele ter uma “experiência mineira", por ter vivido 12 anos em Belo Horizonte), é reconhecida por voltar-se para os conflitos íntimos dos seus vários personagens, colocando-os em confronto com a sociedade e mantendo a coerência com um universo popular. Pode-se dizer que sua obra era profundamente experimental, mas na qual não faltava humor. E a idade avançada não impediu-lhe de continuar produzindo. Seu último livro publicado em vida, Anjo Noturno, foi lançado em 2017 e venceu o prêmio da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). Na obra, ao longo de nove narrativas, Sant’Anna desfia sua prosa transgressora ao se debruçar sobre a nostalgia, a morte, o desejo carnal, o amor e a solidão.
Cheguei a perguntar a ele qual dos livros que ele tinha escrito era seu predileto e ele me respondeu que era A Tragédia Brasileira, escrito em 1987. Transcrevo aqui na íntegra as palavras que ele me me transmitiu pela janela privada do meu Facebook em 16 de fevereiro de 2020, por ocasião do meu aniversário em que ele , notificado pelo Facebook aproveitou para me parabenizar e começamos a conversar e lhe perguntei sobre isso :
— Gosto muito desse meu livro, Vera, pois nele contei uma história cheia de acidentes de percurso, é uma história que me seduz muito, contei a história de uma mocinha atropelada no Rio de Janeiro. Por várias circunstâncias que estão no texto, ela é considerada uma virgem santa. A partir daí pego toda uma religiosidade, o cemitério... Ela morre, mas fica com o corpo tão intacto que virou uma morta muito bonita. Leia ue você vai gostar.
E nem é preciso dizer que gostei mesmo. O Sérgio tinha o hábito de contar tudo sobre as obras dele a quem se dispusesse a ouvir. Averiguei isso quando depois de sua morte travei contato com muitos amigos comuns dele no Face e eles me confirmaram que ele era um excelente papo em se tratando de discutir com seus leitores os livros dele. Esmiuçava tudo, tirava dúvidas, trocava ideias, explicava... muitos desses amigos foram seus alunos e me contaram que ele foi um excelente professor. Então agora, passado esse tempo, entendi o porquê de seu didatismo a cada vez que eu fazia uma pergunta sobre sua obra. Era mesmo de sua natureza fazer isso.
Ele também me lembrou o fato de que sua literatura foi prestigiada também no cinema. O conto que dá título à coletânea A senhorita Simpson (1989) virou o longa Bossa nova, de Bruno Barreto. Já a peça Um romance de geração deu origem a um filme dirigido por David França Mendes em 2008.
O escritor nunca abandonou os contos, mesmo quando o gênero, infelizmente, começou a ser desvalorizado no Brasil, ao longo dos anos. “A fidelidade é porque comecei (minha carreira) no conto. Fui adquirindo o formato. Sempre penso em função de um término. Não tenho vontade de espichar. É minha vocação”, disse em entrevista a O Globo, em 2016.
Concluindo esse texto, só tenho a acrescentar que meu amigo Sergio fará muita falta. Ele ainda tinha muito a oferecer e me contou pelo Face antes da semana fatídica em que foi internado, que tinha publicado um conto intitulado A Dama de Branco e num comovente gesto de consideração, o enviou para meu e-mail perguntando se podia dar meu parecer. Não tive tempo. Quando acabei de lê-lo, quis o destino que ele partisse. Mas ficará para sempre na minha lembrança as palavras carinhosas e de estímulo com que ele me escrevia . Uma amizade virtual sim, mas parecia que éramos amigos há anos e já nos conhecíamos pessoalmente. Foi uma das experiências mais estranhas e impactantes que tive. Sem dúvida, se não fosse a pandemia, creio que ele até teria me convidado para um café na sua biblioteca. Vai ficar para sempre na minha memória e no meu coração. Onde quer que esteja Sergio, muito obrigada por seu carinho, apreço e atenção ! Você será sempre uma grande influência em minha vida. Até um dia !

AMAZONA - Publicado pela primeira vez em 1986, Amazona foi recebido com espanto pelo público. Este retrato transgressor sobre a libertação da mulher não só destoava da produção literária da época, mas acertava em cheio as questões políticas do país, que dava os primeiros passos em direção à transição democrática. O mito grego das mulheres guerreiras é a metáfora que conduz o livro, que narra a ascensão da bela Dionísia, uma típica esposa da classe média carioca, ao poder -- primeiro como modelo de revista erótica e depois como uma proeminente figura política do Brasil dos anos 1980.
Fazendo uso dos melhores artifícios da ficção, Sérgio Sant'Anna põe lado a lado o mais fino das ironias e digressões machadianas e os elementos vitais dos romances de folhetim -- sexo, drogas, chantagens e intrigas políticas -- e cria uma obra que permanece única mesmo depois de três décadas de seu lançamento.
ANJO NOTURNO - Ao longo de nove narrativas, Sérgio Sant'Anna desfia sua prosa transgressora ao se debruçar sobre a nostalgia, a morte, o desejo carnal, o amor e a solidão. Livro vencedor do prêmio APCA em 2017.
O CONCERTO DE JOÃO GILBERTO - Numa de suas raras declarações públicas, o escritor Sérgio Sant'Anna afirmou: "Me dou melhor com formas mais breves. Tenho muito mais tendência à narrativa curta do que ao romance. O conto me permite experimentar mais". Se os espantosos romances do autor estão aí para desmentir em parte tal afirmação, não se pode negar que o conto é o espaço onde Sant'Anna parece mais à vontade para jogar com as palavras.
Assim, o conhecido gênero ganha novas abordagens, num registro que combina com maestria a alta e a baixa literaturas, o erudito e o pop, o sagrado e o por vezes indescritivelmente profano. Num tom cortante e desconcertante, o autor passeia por cenários familiares e aponta ao leitor as possibilidades narrativas escondidas por eles. Onde vemos esgotamento, o autor vê um campo de possibilidades, como se o mundo enxergado por ele exigisse uma radicalização da linguagem e das formas de expressão.
Publicado no início dos anos 1980, O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro arrebatou crítica e público, e colocou Sant'Anna definitivamente no mapa das letras brasileiras. Um livro que marcou o início de uma geração deliciosamente livre, e cujas influências se fazem sentir até os dias de hoje.
O HOMEM-MULHER - A obra de Sérgio Sant'Anna é de difícil classificação. Transgressor contumaz, ele vem desde a década de 1960 testando os limites da prosa, dos gêneros - e da própria ideia de literatura. Seus romances, contos, poemas, novelas e peças de teatro romperam tradições e derrubaram barreiras entre alta e baixa cultura, entre popular e erudito, numa linguagem descarnada tão reconhecível quanto escorregadia, que influenciou inúmeras gerações de escritores.
Apesar da explícita vocação experimental, Sant'Anna sempre foi também autor de prosa acolhedora, cujo interesse parece residir não em alienar o leitor, mas, ao contrário, em incluí-lo nos intricados e deliciosos jogos literários que concebe. Os contos de O homem-mulher configuram a expressão máxima dessa ideia. É o caso da história em que o protagonista se apaixona pela vendedora de lencinhos que junta dinheiro para o tratamento de câncer do marido. Em meio à alta carga erótica da trama, o conto também se revela delicado como os produtos da garota. Ou, então, do magistral e imediatamente antológico Eles dois, que narra, com força cinematográfica, a história de um casal morando num casarão nos anos 1970.
Capaz de surpreender até seus leitores mais antigos, O homem-mulher é também uma perfeita porta de entrada para a obra rica, vasta e memorável de Sérgio Sant'Anna.
O CONTO ZERO - Na trilha do espantoso Homem-mulher, um dos mais impactantes livros de ficção publicados no Brasil nos últimos anos, Sérgio Sant’Anna volta à forma curta para explorar os labirintos da existência, do amor, da memória e da solidão. Neste que é um de seus trabalhos mais pessoais, Sant’Anna combina lembrança e imaginação para recriar viagens, impressões e momentos únicos que se perderam no tempo. É assim que reconta sua residência em Iowa, quando o jovem escritor sai do Brasil em meio à ditadura para ter um contato com artistas do mundo inteiro e cujo impacto continuará sentido décadas após a viagem. O conto zero e outras histórias traz o grande escritor brasileiro em sua melhor forma.
O LIVRO DE PRAGA - Os sete contos de que compõem o sexto volume da coleção Amores Expressos narram a viagem improvável de Antônio Fernandes à capital tcheca. A ponte Carlos é o eixo geográfico de aventuras que insistem na ideia de que Transcendência, arte e sexo convergem em morte.
É tanto um romance quanto uma coletânea de contos, aproveitando com engenho as possibilidades dessa indecisão. São “narrativas de amor e arte”, como diz o subtítulo, que operam a partir da acumulação romanesca sem, contudo, abrir mão da intensidade única de cada episódio. Todas as histórias são contadas pelo mesmo narrador, Antônio Fernandes, que está na cidade de Praga por conta de “um projeto privado que envia escritores brasileiros a várias cidades do mundo”, conforme suas próprias palavras – uma referência ao verídico projeto Amores Expressos, do qual "O livro de Praga" é mais um dos frutos (junto com "O filho da mãe", de Bernardo Carvalho, entre outros).
O VÔO DA MADRUGADA - O Vôo da Madrugada' traz dezesseis textos em que Sérgio Sant'Anna conta histórias de grande voltagem erótica, profundidade psicológica e especulação filosófica. O conto que dá nome ao livro descreve uma viagem noturna de avião. Sufocado pelo clima quente e opressivo de Boa Vista (Roraima), cidade que visita a trabalho, o protagonista toma um vôo especial, fretado para levar a São Paulo familiares de pessoas que morreram, dias antes, num desastre aéreo.
UM ROMANCE DE GERAÇÃO - Só a gente sabe a delícia e a dor de ser, quem se é. Essa afirmação cabe muito bem no início de uma análise do famoso Um Romance de Geração, indo assim à essência desta peça teatral transcrita em romance literário. Lançado logo no período final do regime militar do Brasil, em 1980, temos aqui uma peça de dois personagens conosco sendo o terceiro a habitar um minúsculo apartamento, num verão acachapante em Copacabana, no Rio de Janeiro. Ela, uma jornalista tentando trabalhar com seu gravador, seus pudores e suas dúvidas. Ele, um escritor bêbado com problemas existenciais e insatisfeito com sua vida insignificante, e que se prestou, foi para lançar uma espécie de best-seller e ser reconhecido exclusivamente por isso – inclusive pelas mulheres que pegou por isso, e a pouca fama conquistada, desde então.
Compondo um panorama sobre os anseios, questionamentos e o comportamento de uma geração marcada pelo regime político imposto a ela, Sérgio Sant’Anna nos conduz através de um brilhante dinamismo literário pela aventura de uma aventura inesquecível que, inicialmente, seria sobre a literatura brasileira vivendo o impacto da ditadura. Contudo, o escritor exerce com toda sua trajetória profissional e pessoal de vida um poder incomensurável sobre os rumos desta empreitada jornalística, e Ela (como é chamada ao longo de toda a leitura) não evita em mergulhar nas palavras d’Ele (como também é assim dirigido), tal uma confidente a quem ele não consegue resistir, e desabrocha seus prazeres e angústias como se conhecesse a mulher a mais tempo que suas ex-esposas com quem casou, já prevendo o apocalipse, a seguir.
UM CRIME DELICADO - Um Crime Delicado, de Sérgio Sant’Anna, traz em auto narração Antônio Martins, um crítico de teatro que se envolve casualmente com Inês, que posteriormente ele descobre como sendo modelo de Vitório Brancatti, e então passando a especular e sugerir como sendo alguém a ter uma relação sádica com a moça.
Antônio entra em devaneio após conhecer Inês, que se torna a partir daí sua musa, causa para a perda da calmaria em sua vida tão centrada, atrapalhando seu raciocínio lógico, tornando-o um grande questionador. Ele divaga e entra em sentimento intrínsecos e duvidosos como a raiva e o ciúme, esses dirigidos à Vitório Brancatti, que devo ressaltar, o livro não revelou o que realmente era de Inês, além de “financiador”, ou “patrão” de Inês.
Quem é realmente Inês? O que pensa ela? Um livro inteiramente narrado por um personagem que no final das contas é acusado de abuso sexual nos leva a concluir que o autor justamente não queria que tivéssemos uma conclusão clara de como foram as coisas, e sim que pudéssemos avaliar nossa cumplicidade ou não à Antônio, o julgando inocente, ou mesmo depois de tanto ele esmiuçar os fatos, conseguíssemos detestá-lo.
Um livro com um detalhamento quase fútil, é fácil se perder na leitura esquecendo-se realmente do que era quisto ser retratado. O interessante é quantas vezes o personagem se perdia para assuntos terciários, em nada coligados ao caso “Inês”. E Inês? Para uma personagem tão importante, ela pouco teve ação, e tão abertamente fora citada sendo então quase fictícia para o próprio personagem principal, ficando sem uma voz, sem modos que a detalhassem quem ela realmente era, o que pensava, e não somente o que Antônio sugeria ou almejava dela. Entendo que, o que autor pretendeu, é mostrar que nem mesmo o próprio personagem/narrador, sabia as respostas para as perguntas que ficam no ar, após essa leitura. O que nos resta apenas é questionar, deduzir, e ser assim, um dos tantos que estiveram no júri que não absolveu nem culpou Antônio.
Ficamos sem saber quem era Vitório, Nílton, Inês; se eram “mocinhos” ou “vilões”. Será que a intensão desde o início foi deixar o leitor sem essas informações básicas? Por que Antônio de nada sabe e tão envolvidos com ele ficou?

VÍDEO
Nessa entrevista realizada no dia 12/06/2011 para o programa Entrelinhas, Sergio Sant´anna foi entrevistado quando acabava de lançar sua obra "O Livro de Praga". Nessa entrevista o escritor falou sobre sua experiência em Praga e sobre o enredo, repleto de fetiches e perversões.