
O CORPO
Conto publicado no blog do jornalista Mário Magalhães no dia 03/03/2014 e transcrito aqui
https://blogdomariomagalhaes.blogosfera.uol.com.br/2014/03/03/o-corpo-um-conto-de-sergio-santanna/

Eram quinze para as seis da manhã, a claridade apenas despontando e Fernando Antônio levantou-se sem hesitação ao som do despertador do celular, tão baixo que Ana Lívia apenas estremeceu na cama. Fernando Antônio gostava de sentir o corpo de Ana perto do seu, mas não o tocou, para ela não acordar. Ele foi ao banheiro, depois voltou para o quarto e vestiu o short e a camiseta, calçou as meias e o par de tênis, para correr à beira da praia, a tempo de retornar e preparar-se para sair antes de oito horas da manhã e dos engarrafamentos. Sempre chegava cedo à corretora, a fim de conferir as cotações das bolsas da Europa e do fechamento na Ásia, antes de abertura do mercado em São Paulo. Poderia fazer isso no próprio celular, mas não queria misturar as coisas: o seu apartamento, Ana Lívia, o exercício físico, com o trabalho.
Fernando foi à cozinha, bebeu um pouco d’água, descascou e partiu pedaços de mamão, que pôs no liquidificador. Café da manhã completo, ele deixava para tomar na volta, talvez em companhia de Ana Lívia, quando a empregada já tivesse chegado. Com o copo com o suco na mão, caminhou até a janela da sala, no oitavo andar, que passava a noite fechada, por causa do vento que vinha do mar. Abriu-a, sentiu o ar fresco da manhã, o cheiro da maresia, ouviu o barulho das ondas quebrando, mais nítido a essa hora, e também notou que onde uma onda se formava havia algo parecido com um corpo negro boiando, mas, com a luz ainda insuficiente, não podia identificar se era um afogado, ou um surfista madrugador, ou alguém nadando.
Fernando bebeu o último gole do suco e dirigiu-se à porta do apartamento. Tomou o elevador e, ao chegar à rua, notou que algumas das pessoas que vinham cedo para correr ou caminhar no calçadão haviam parado do outro lado da Avenida Vieira Souto e olhavam em direção ao mar. Resolveu então atravessar a avenida e certificou-se de que havia mesmo o cadáver de um negro que era jogado de um lado para outro, e para cima e para baixo nas ondas. E Fernando não pôde deixar de filosofar como todo mundo diante de um cadáver, filosofia que podia ser reduzida à sua expressão mais simples com as palavras: o homem negro está morto, eu estou vivo, mas também vou morrer. Sentiu-se levemente deprimido e iniciou imediatamente sua corrida.
Naquele momento três rapazes carregando pranchas de surfe vinham chegando pelo calçadão e um deles disse: “Vamos chegar lá perto para ver.” Outro respondeu: “Que isso, mermão, defunto a uma hora dessas? Vamos pro Arpoador.” E o terceiro surfista disse para o segundo, em voz bastante alta, de modo a ser ouvido pelo primeiro, o que fizera a proposta e já pulara para a areia: “Olha lá o Juninho, olha lá: vai pegar onda com o defunto.”
A senhora Carlota Macedo, viúva, 68 anos, viera descendo às seis e meia daquela manhã a Rua Joana Angélica e acabara de chegar à Avenida Vieira Souto. Vestida com um moletom, um biquíni por baixo e usando tênis, a senhora Macedo queria mostrar-se, inclusive para si própria, como uma caminhante igual às outras, mas seus passos eram nervosos, sem ritmo. Carlota tomava comprimidos contra a depressão e a insônia, mas seu sono não costumava passar das quatro e meia, cinco da manhã. Ela virava de um lado para outro na cama, mas não dormia mais e, compulsivamente, se ligava em algum pensamento depressivo, que levava a outro e mais outro e mais outro. O seu psiquiatra já lhe dera permissão para telefonar para ele a qualquer hora, mas quando ela ligava assim tão cedo, invariavelmente a chamada caía numa secretária eletrônica ou caixa postal. O psiquiatra, ou os poucos amigos de Carlota, ou os seus filhos, impacientes, aconselhavam-na a não ficar parada e sim fazer ginástica, ou caminhar, tomar sol e banhos de mar, o que ela pretendia fazer naquela manhã mesma, embora lhe custasse muita coragem, principalmente para mergulhar.
Carlota caminhava como se pudesse fugir de si mesma, da sua mente, mas apesar do exercício aeróbico, dentro dela era um labirinto sempre conduzindo ao medo, ao pânico e a um desejo de morrer durante o sono. E o pior era quando o sol, iluminando a praia, tornando o céu completamente azul, feria a sua vista, contrastava com o cinza que ela trazia dentro de si. Mas ela não ia desistir assim tão fácil e, cruzando a avenida, começou a caminhar em direção ao Arpoador.
Aproximando-se da Rua Vinicius de Moraes, Carlota se deu conta de duas pequenas aglomerações, uma no calçadão, outra na beira do mar, no lado oposto à Rua Farme de Amoedo. O coração dela disparou, mas ela sentia a esperança de que não fosse um afogado e sim, por exemplo, uma baleia aproximando-se da praia, o que não era assim tão raro. Depois de fixar seus olhos no oceano e não ver baleia alguma, Carlota pensou em dar meia-volta e caminhar na direção contrária. Mas era perto do Arpoador, cuja direção ela tomava, que o mar era mais calmo para entrar na água. E Carlota prosseguiu e, bem próximo à Farme de Amoedo, viu o corpo do homem negro no mar, que era jogado todo desengonçado pelas ondas e com toda a certeza estava morto. Não podia haver cena mais tétrica do que essa e, andando com passos mecânicos, Carlota viu ainda mais nitidamente o corpo. No instante seguinte, ele estava no topo de uma onda e Carlota julgou ver seus olhos abertos. E disse para si própria, antes de virar-se e andar o mais depressa possível no rumo da Rua Joana Angélica e de casa: “Esse já não sofre mais.”
Mas, afinal, o que aconteceu com esse? Um banhista que se afogou tão cedo? Quando, depois de ser, por fim, depositado na areia, viu-se que havia um buraco de bala em sua testa. Isso devia ter acontecido havia não muito tempo e perto dali, porque o corpo não exibia sinais visíveis de decomposição, disse um cabo da PM que chegou ao local, com um soldado da corporação, que estacionou a viatura próximo à calçada. Depois de puxar o cadáver um pouco mais para a areia, o cabo verificou que no bolso da bermuda, única vestimenta do morto, não havia nenhum documento nem dinheiro. O outro policial trouxe do carro-patrulha um plástico negro e com ele cobriu o cadáver. “É capaz de ele ter sido morto lá nas pedras do Arpoador”, disse o cabo.
Sentado num banco da calçada, um senhor aposentado, vendo a cena, lembrou-se de uma história que lera numa coluna de jornal, havia alguns anos, sobre os cadáveres de dois afogados amarrados por cordas por algumas horas num barco do Serviço de Salvamento, no Mourisco, à vista de pessoas que almoçavam numa churrascaria em frente ao mar. E várias delas iam embora, é claro.
Por volta das oito horas, horário em que as mães traziam as crianças pequenas para a praia, o corpo sob o plástico ainda continuava lá. Os banhistas matutinos guardavam uma boa distância do defunto. Afinal, ninguém quer pegar praia perto de um morto.
Mas um pregador bíblico, vestido com um velho terno, sem gravata e surgido não se sabia de onde, aproximou-se do cadáver e pronunciou, elevando a voz, a seguinte prédica, tirada do Livro da Sabedoria:
“Pois do nada somos nascidos e depois desta vida seremos como se nunca tivéramos sido. Pois a respiração de nossos narizes não passa de fumaça e a razão é como faísca para mover nosso coração.”
Quando chegou em casa às 7 horas, Fernando Antônio já encontrou a mesa arrumada para o café da manhã para duas pessoas. Mas Fernando não sabia se Ana Lívia ia acordar a tempo de tomar café junto com ele. Ela costumava dormir ali duas ou três vezes por semana e às vezes só se levantava depois que ele saía. Fernando foi ao banheiro, fez a barba, tomou uma chuveirada e depois, já no quarto, começou a vestir o terno. Pôs a camisa, os sapatos, a gravata, mas o paletó deixou para depois.
Ana Lívia sonhava com uma centopeia que lhe subia pela perna. Pronunciou algumas palavras aflitas e incompreensíveis, abriu os olhos e viu Fernando Antônio. “Me abraça”, ela disse.
Ele sentou-se na cama, abraçou-a e disse que tinha de ir, mas ainda dava tempo de tomarem o café juntos. Ela disse para ele ir na frente, que ela já ia indo.
Ana Lívia entrou na sala vestida com uma camisa de Fernando, de mangas compridas e a calcinha por baixo. Cumprimentou Ifigênia, a diarista, e sentou-se. Era bem jovem, morena e bonita. Fernando preferiu não comentar sobre o homem morto na praia. Com o pé direito acariciou a coxa de Ana Lívia sob a mesa, mas logo teve de levantar-se para sair. Ana Lívia saiu uma hora mais tarde, para a faculdade onde fazia mestrado.
No acostamento da pista da praia, lá pelas dez horas, chegou o rabecão. Sem maiores cuidados, dois funcionários do Instituto Médico-Legal trocaram o plástico da polícia por um do Instituto e depois puseram o morto coberto num caixão de metal e o levaram para um furgão em que estava escrito: IML — Transporte de Cadáveres.
Na carroceria do furgão, havia mais dois corpos, além do corpo do homem negro, cada um em uma gaveta, restando uma gaveta vaga. Nenhum ser humano vivo ali naquela parte do veículo. No entanto, havia vida ali, inconsciente, dos vermes que já haviam começado a devorar os cadáveres. Que vermes são esses? Nós, os leigos, não sabemos, mas já os trazemos dentro de nós, à espera de tomarem conta do nosso corpo.
